sábado, 1 de setembro de 2012

100 Anos de Nelson Rodrigues / Complexo de vira-latas



Complexo de vira-latas
Nelson Rodrigues


Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto:

— Não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar.


Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros,




 Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: “extraiu” de nós o título como se fosse um dente.




E hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança.



Só imagino uma coisa: — se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade:

— eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto joga dores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo.


Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma:

— temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “com plexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?” Eu explico.

Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Por que, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade.


Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.

O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.
Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.

Texto extraído do livro “As cem melhores crônicas brasileiras”, editora Objetiva, Rio de Janeiro (RJ), p 118/119, e ao  livro “À sombra das chuteiras imortais: crônicas de chutava”, seleção de notas de Ruy Castro – Companhia das Letras – 1993.
Nelson Rodrigues tudo sobre o autor e sua obra em "Biografias".


Grande artilheiro Marcão,

Você mais uma vez foi muito feliz em publicar o texto escrito pelo Nelson Rodrigues, na semana em que ele faria 100 anos.

A matéria foi escrita antes do Brasil conquistar a Copa do mundo de 1958 e aí podemos constatar a grande capacidade dele em escrever a realidade do futebol brasileiro daquele longínquo momento, que separava a seleção brasileira do risco de mais um fracasso instigado pelo "complexo de vira-latas", da possibilidade de finalmente transformar sua reconhecida técnica futebolística em resultado favorável ao enfrentar as grandes seleções européias como a Rússia,Inglaterra, França e finalmente a Suécia .

Na época esse realmente era o grande drama e dúvida que a imprensa alimentava na mente dos torcedores pois a derrota para o Uruguai na copa de 50 não era esquecida, muito ao contrário, era trazida à tona em todos os comentários. 

O fracasso na copa de 54, ao ser derrotada por 4x2 pela fabulosa seleção da Hungria do grande Puskas, aumentava ainda mais o complexo de "vira-latas", pois o Brasil tinha em suas seleções, craques maravilhosos como Zizinho, Ademir de Menezes, Didi, Nilton Santos, Djalma Santos, Bauer, Danilo, Zito, Garrincha e apresentava um garoto prodígio, Pelé, que reforçavam ainda mais o medo de perder, não pela qualidade dos jogadores, mas pelo decantado complexo.

E quem poderia escrever melhor sobre um drama no futebol do que Nelson Rodrigues, que em sua formação e vida pessoal passou por dramas muito fortes, como ver seu irmão ser assassinado em plena redação, por uma mulher da sociedade, que teve seu desquite divulgado e ironizado por seu irmão.

A seleção de 1958, a meu ver, foi a melhor e mais consistente seleção que o Brasil já teve. Era maravilhoso ver o Brasil que venceu a Rússia por 2x0, a França de Kopá e Fontaine, por 5x2, mesmo placar imposto à Suécia na final.

Gilmar, Djalma Santos, Beline, Orlando Peçanha e Nilton Santos
Zito e Didi
Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo 

Marino


Parabéns Marino texto muito bem escrito e oportuno, bjkas Marcão

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